Marina Silva é professora de ensino médio, senadora (PV-AC) e ex-ministra do Meio Ambiente.
O Ibama concedeu a licença prévia para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Trata-se de um projeto muito polêmico, localizado no rio Xingu, no Pará, próximo ao município de Altamira, numa região conhecida como Volta Grande do Xingu. O nome deve-se ao desenho do rio que, visto de cima, assemelha-se a uma “ferradura”.
Por meio de barragens, as águas do rio serão desviadas para um canal que unirá as pontas mais próximas dessa “ferradura”. Ao final desse canal, as águas passarão pelas turbinas antes de retornarem ao seu curso normal.
Como tudo na Amazônia, os números que envolvem a obra são gigantescos. A quantidade de terra e pedra que será retirada na escavação do canal – cerca de 210 milhões de m³ - é um pouco menor da que foi removida na construção do Canal do Panamá. E ainda nem se definiu qual a destinação desse material. Pelo leito do rio Xingu passa uma vazão de 23.000 m³/s de água no período de cheia. Um volume correspondente a quatro vezes a vazão, também nos períodos de cheia, das Cataratas do Iguaçu.
Os impactos socioambientais também terão essa mesma ordem de grandeza. E ainda não foram concluídos. Só sobre a fauna, segundo dados coletados durante o Estudo de Impacto Ambiental, podemos ter uma idéia. Na área existem 440 espécies de aves (algumas ameaçadas de extinção, como a arara-azul), 259 espécies de mamíferos (40 de porte médio ou grande), 174 de répteis e 387 de peixes.
Apenas a eficiência energética da usina não será tão grande. Uma obra colossal que custará certamente mais de R$ 30 bilhões - se somados todos os gastos, como o custo e a extensão da linha de transmissão, por exemplo - terá uma capacidade instalada de gerar, em média, 4.428 MW, em razão do que poderá ser suportado pelo regime hídrico do rio, nesta configuração do projeto. E não os 11.223 MW que estão sendo equivocadamente anunciados.
A energia média efetiva entregue ao sistema de distribuição será de 39% da capacidade máxima de geração, enquanto a recomendação técnica indica que essa eficiência seja de pelo menos 55%.
Para que Belo Monte possa apresentar um grau de eficiência energética compatível com as recomendações técnicas, seria necessária a construção de outras três hidrelétricas na bacia do rio Xingu, que teriam a função de regularizar a vazão do rio. Por ora, a construção dessas usinas foi descartada pelo governo porque estão projetadas para o coração da bacia, onde 40% das terras pertencem aos indígenas.
No entanto, a insistência em manter o projeto nessa dimensão (apesar de haver alternativa de barragem com quase metade da capacidade instalada e perda de pouco mais de 15% na potência média gerada) provoca forte desconfiança, tanto dos analistas como das comunidades e dos movimentos sociais envolvidos, de que a desistência de construir as outras três hidrelétricas seja apenas temporária.
A população indígena - são mais de 28 etnias naquela região - ficará prensada entre as cabeceiras dos rios que formam a bacia, hoje em processo acelerado de exploração econômica e com alto nível de desmatamento acumulado. E a barragem, além de interromper o fluxo migratório de várias espécies, vai alterar as características de vazão do rio.
É incrível que um empreendimento com esse nível de interferência em ambientes sensíveis seja idealizado sem um planejamento adequado quanto ao uso e à ocupação do território. A solução de problemas dessa dimensão não pode ser delegada exclusivamente a uma empresa com interesse específico na exploração do potencial hidrelétrico, com todas as limitações conhecidas do processo de licenciamento.
Com a obra, são esperadas mais de 100 mil pessoas na região. Não há como dar conta do adensamento populacional que será provocado no meio da floresta amazônica, sem um planejamento para essa ocupação e um melhor ordenamento do território. Isso só pode ser alcançado através da elaboração de um Plano de Desenvolvimento Sustentável na região de abrangência da obra.
Essa foi uma grande omissão nesse processo, mas não a única. Não temos como deixar de indagar se não há outros aproveitamentos hidrelétricos que seriam mais recomendados, sob o ponto de vista dos impactos ambientais ou da eficiência energética.
No entanto, não há projetos com estudo de viabilidade técnica e econômica prontos para serem submetidos ao licenciamento ambiental. Apesar de o diagnóstico ser conhecido desde 2003, apenas em meados do ano passado foram finalizadas as primeiras revisões de inventário de bacia hidrográfica, como a do Tapajós.
Com isso, projetos polêmicos e com grandes impactos têm que ser analisados em prazos muitas vezes incompatíveis com o grau de rigor que deveriam ter, numa clara demonstração de como, muitas vezes, os ativos ambientais são afetados pela falta de planejamento de outros setores de governo.
Porém, nada foi mais afetado do que nosso compromisso ético frente à responsabilidade com o futuro de povos e culturas. Não foram sequer feitos estudos sobre os impactos que os povos indígenas terão. Só para exemplificar, o que significará para eles ter a vazão reduzida significativamente num trecho de 100km em função do desvio das águas para o canal? O plano de condicionantes tampouco menciona a regularização de duas Terras Indígenas (Parakanã e Arara), já bastante ameaçadas.
Estas e outras comunidades indígenas manifestam inconformidade por não terem sido ouvidas adequadamente, segundo os preceitos da Resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, mas nunca implementada para valer.
O Brasil possui um importante potencial de geração de energia hidrelétrica a ser desenvolvido. Mas as dificuldades em retomar o planejamento do setor na velocidade que possibilite escolhas e uma análise segura por parte do setor ambiental, somada à indisposição em discutir uma proposta de desenvolvimento sustentável para as obras de infraestrutura localizadas na Amazônia, à percepção de que o governo não faz o suficiente para melhorar a eficiência energética do sistema (não só na geração) e para desenvolver as energias alternativas, acaba por produzir conflitos agudos e processos equivocados, que poderiam ser evitados.
Apesar dos discursos em contrário, ainda estamos operando no padrão antigo, que considera o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento. Temos ainda um longo dever de casa a ser feito para ingressarmos definitivamente no século 21. Quem pensa que a história relatada no filme Avatar só pode ocorrer em outro planeta, engana-se: Pandora também pode ser aqui.
Fonte: Envolverde / A autora .
A adequação ambiental das propriedades é uma questão que precisa ser encarada com muita seriedade. Foto: Wigold Schaffer
Uma carta assinada por redes representantes de ONGs e movimentos sociais, protocolada na última sexta-feira na Casa Civil da Presidência da República e em vários ministérios, sugere contribuições para aprimorar a legislação florestal brasileira e avalia propostas que vem sendo apresentadas pelo governo federal. O documento indica que a modificação do Código Florestal – principal instrumento normativo para proteger a vegetação nativa brasileira – pode afetar não somente o patrimônio natural do País, mas também populações, clima e nossa imagem internacional, e sugere aperfeiçoamento de regras, mantendo, porém, a essência da lei.
Os autores da carta apresentam, entre as propostas, pontos que necessitam de modernização, como a necessidade de cadastramento georreferenciado dos imóveis rurais em todo o País e a limitação do desmatamento de novas áreas. Eles defendem que já há áreas suficientes para produção agrícola e expansão urbana, e várias regiões cujos ecossistemas já foram excessivamente alterados, de forma que seria indicado aprimorar as áreas em uso em vez de contribuir para aumentar as emissões de gases de efeito estufa. O texto cita o Pacto pela Valorização da Floresta e pelo Fim do Desmatamento na Amazônia, criado em 2007 por organizações da sociedade civil, em conjunto com autoridades públicas e do meio científico, para impedir o avanço desnecessário do desmatamento na Amazônia e em todo o Brasil.
O processo de modificação da lei, de acordo com o documento, “deve necessariamente buscar o fim de novos desmatamentos, o que leva à necessidade de se criar, por outros instrumentos, formas de valorização da floresta e de incentivo à sua recuperação nas áreas onde isso se faz necessário”. Outra mudança sugerida é quanto à escala de aplicação da lei, para que toda bacia hidrográfica, em todos os biomas, tenha um mínimo de vegetação nativa em seu interior.
O documento também faz uma análise dos pontos apresentados pelo Ministério do Meio Ambiente em conjunto com algumas organizações ligadas à agricultura familiar, que envolvem, por exemplo, a regulamentação do uso da reserva legal e modificações no regime de uso de algumas Áreas de Preservação Permanente (APP) nas pequenas propriedades. Para os signatários, boa parte do exposto, embora não implique necessariamente em modificação na lei, deve ser acatado, pois “a lei não pode tratar (como já não trata) da mesma forma todos os imóveis rurais, independentemente do tamanho e renda de seu proprietário, pois isso implicaria em injustiças e, inclusive, em ineficiência no cumprimento das regras”.
Além disso, são apresentadas opções às propostas do Ministério da Agricultura e de líderes ruralistas, como o reconhecimento de “usos consolidados” e “direito adquirido” para desonerar a recuperação das APPs e a compensação da RL fora da microbacia em outro Estado e bioma, para reduzir custos. Segundo o documento, compensar a RL em outro estado e bioma desvirtuaria completamente sua função ambiental “que é proteger a biodiversidade (naturalmente distinta em cada região) e o ciclo hidrológico (também dependente da vegetação existente na própria bacia)”. A sugestão socioambientalista é criar incentivos eficientes para que os proprietários recuperem a Reserva Legal (RL) e manter a exigência de compensação na mesma microbacia.
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